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Sandra Abreu

Cacos de vidro

A pobreza não te dá paradeiro certo por que quando o proprietário calha de aumentar o aluguel, não tem jeito, é mudar. Não tem conversa nem choro: é o setor imobiliário, é a inflação, etc, etc. É o caralho. A gente mete as tralhas no carreto e muda mais para longe do trabalho.

Desde que eu que saí de casa já mudei cinco vezes. A cada mudança a casa fica menor e para trás os móveis que se desmontar não monta mais. No caminhão não cabe as plantas, os bichos vão no colo e com ajudante é mais caro.

 Há uns dois anos essas caixas de papelão cheias de passado servem de armário e é tanta coisa que se perde que a gente aprende o desapego. Mas dessa vez a casa tem quintal, vou poder extender varal, botar os bichos para fora, pegar sol.

Pro frete sair barato eu disse que não precisava de ajudante, por que o marido tinha braço, mas o dono do caminhão cismou que não ia ajudar a carregar nada, que era pagar o rapaz para descer a máquina de lavar. Cento e cinquenta reais a mais pra um sujeito levar a máquina.

Eu não ia pagar. 

Um só não dá conta, chiou o marido, eu já ia enojada dessa vida de miséria mas aí lembrei do Arthur, o guri que brincava de terra comigo, crescemos na mesma rua. Soube que trabalhava com frete, ele não ia meter a mão e me cobrar cento e cinquenta reais só pra isso. 

Mandei mensagem, ficou combinado.

O calor já ia alto de manhã cedo, a gente fedendo e suando nas roupas, me chega esse sujeito familiar mas muito bronzeado com um sorriso forte de cavalo. Falou meu nome demorado como se fosse um poema de velho e aliviou dos meus braços o peso da caixa de pratos. 

Era Arthur se apresentando com um aperto de mão, vê se pode, esse menino. Uma

mão grossa num braço venoso de quem trabalha fazendo força. Eu disfarcei minha cara de fome ridícula e mandei entrar para pegar a máquina. Ele passou encolhendo a barriga para caber entre a porta e a máquina que ia enjambrada na passagem.

Lá de dentro ouvi os dois, meu marido e ele, articulando os cálculos para empurrar a máquina pela porta como guris competindo o pau maior. Fui dar as ordens por que já se demoravam nos argumentos e eu queria almoçar na casa nova. Era deitar a máquina de lado e passar com cuidado para não arrancar o alisar. 

E por falar nisso, o volume do rapaz não sei dizer se era o tamanho natural ou se já andava teso e pronto para qualquer investida. Na minha memória era difícil conectar a imagem daquele caniço que comia terra a esse trator de fazer força. 

Levantou a máquina sozinho, vi estufar os peitos sob a camisa puída, enquanto o marido caranguejava ao seu redor cuidando para não marcar as paredes. Descansei do suor das nádegas com o cachorro no colo, esperando fecharem o caminhão.

Pensativa nessa tralha toda, chegar lá e ainda ter que arrumar isso, cozinhar, atentar se o cachorro não foge, se as plantas não morrem, se ficou troço pra trás. Meti Rambinho na coleira e falei que ia na frente para agilizar o portão. 

Menti. 

Parei na Joana e num surto mandei mensagem para Arthur vir almoçar depois que descarregasse a mudança. Ele demorou uns vinte minutos que tomei imaginando as safadezas que faríamos com pressa dentro do carro sob a perturbação do proibido, chegava rir sozinha ajeitando a saia.

Joana era comida à quilo e devia ter uns três quilos de arroz com macarrão no prato dele, valha-me deus! Ficamos de conversinha fiada e risadaria, ele já intuia minha intenção. Uns olhares miúdos e o clima esquentando depois de satisfeitos da refeição. De barriga cheia o assunto acabou. Era se jogar na prática ou perder tempo naquele silêncio que já se demorava sem sentido. 

Eu não tava procurando romance. 

Queria era me esfregar na imundície de poeira desse homem diferente, esquecer da mudança, da bagunça e da moleza conjugal. Além do mais eu tinha hora pra voltar, botar comida pro Rambinho.

Era pra ser rápido, mas o macho não tomava a frente, não ia nem vinha na intimação. Eu de estômago mole já impaciente, a calcinha molhando o assento, a cabeça embaralhada na besteira e eis que ele me levanta da cadeira devagar, com um jeitinho sem graça de esmola, pedindo o dinheiro do frete pra comprar cigarro. Bem sem jeito, perguntou num risinho se eu ia pagar seu o prato também por que esse mês foi brabo. 

Um homem daquele tamanho.

Meus joelhos bateram um no outro, bufei de raiva e vergonha lamentando minha burrice. Deixei o troco pro traste e arranquei com o carro. Virei a esquina, o marido e o motorista de bico tentando adivinhar onde eu tava. 

— Parei na Joana né, comprar carne pra almoçar! Só falta querer que eu cozinhe!

Paguei o motorista e fui desembalar as caixas. Uma maré de tristeza me subiu. Será que eu era piranha? Que ideia de jerico querer dar pro carroceiro. Imagina o nojo dentro daquela calça, homem sujo daquele e ainda por cima miserável e sem artimanha. 

Onde eu tava com a cabeça?

Deixei cair uma taça, foi vidro pra todo lado. Marido largou o prato de carne e veio correndo pegar Rambinho no colo já trazendo a vassoura. Mandou me afastar por que eu tava cansada. Fazia um esforço tremendo num braço pra segurar o cachorro e com a outra mão varria os cacos, o suor escorrendo dos cabelos ralos, os olhos na atenção de juntar os vidros, é fácil embolorar o amor na rotina.

Esperei ele terminar de varrer, me procurar com os olhos e perguntar, como sempre faz quando varre a casa: 

—Cadê a pá?

Sentei na pia da cozinha, levantei a saia e respondi ‘tá aqui, oh!, venha logo que a gente tem muita coisa pra arrumar’. 

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