Nós vamos conseguir melhorar de vida, cochichou num beijinho me dando a marmita de segunda-feira. Caminhei até o ponto cansada do mau sono e o dia ainda nem tinha começado. Escala seis por um me lembra trabalho escravo. Catei uns centavos na bolsa, juntei as notas, não quis o troco. O cheiro de óleo diesel e perfume doce me deu azia, desci na portaria, bati o ponto, dei bom dia ao porteiro. Ainda era cedo, mas já fazia 3 horas que ele estava ali.
Fila na máquina de café, geladeira cheia de quentinha fria sem lugar para a minha. Aquela mulher que grita estava na cozinha contando alto como foi o fim de semana.
Não quero saber, volto depois.
Liguei o computador, marmita no chão, barulho do elevador, o gerente nem bom dia:
— Você tem até meio dia para entregar o relatório!
Minha cara quente de ódio, mas não podia retrucar, tem boleto para pagar, fiz sorriso de velório e comecei a digitação. Abri o Excel, travou a tela, tudo normal. Indústria de perfuração, ano dois mil e vinte e meu dedo médio soltou da mão. Caiu alí entre o I e o K.
Pânico.
Que porra é essa?
Olhei para os lados, todo mundo distraído, ninguém viu. O buraco faltando e o dedo esfarelado escondi debaixo do teclado. Em seguida caiu o mindinho, estou alucinando? Corri para o banheiro jogar água no rosto, gosto de zinabre na saliva marrom, passei a mão no cabelo, o tufo caiu no chão, muito cabelo puxava saía, caía no chão.
Bochechei, os dentes entupiram o ralo. A pele marrom oxidando em contato com a água, esfarelava. A ferrugem se espalhava igual larva comendo carne. Os orgãos, o oxigênio levava, tapei o buraco da boca com um pedaço da palma da mão, não vou mais respirar. O que eu faço, rezar?
Não sei oração, o joelho começou a descambar, ajoelhei. O pé soltou da perna, ficou lá o tênis vazio e nem mão eu tinha para juntar as partes. Se respirava, mais a ferrugem comia o que eu precisava para continuar sendo. Os cotovelos cederam, afundou o ombro no peito, a cabeça escorreu até o colo, era o fim. Como alguém pode morrer assim?
Valha-me Deus, respirei o ar limalha e o olho esquerdo ainda teve tempo de ver a porta abrir, vinham duas colegas, queria pedir ajuda mas eu já não era.
Aquela mulher que grita viu meu uniforme sujo de ferrugem e comentou com a outra:
— Essa daí é só a preguiça, olho sem brilho, cara sem viço. Na firma nunca vestiu a camisa e ainda larga tudo assim, dá sumiço. Sem tchau nem discurso, sem fazer bom uso do tempo que passou aqui.
— Eu também acho, mas fofoca eu não espalho. Não entendo essa gente que não ama a empresa, processa e avacalha, difama os colegas e o chefe que só o que fez favor de lhe dar um trabalho.
São Paulo, 09/04/2024