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Sandra Abreu

Pé na areia quente

Meu pai não precisava olhar a tábua da maré para saber se ela estava subindo ou vazando. Pelo cheiro ele sabia se o sudoeste vinha com chuva, se o mar ia limpar e que só no verão encostava anchova. Dar uma linhada ficou cada vez mais difícil por conta do mar cercado com redes das peixarias, não passava nem agulha. No longe se via as traineiras rodeadas de gaivotas, puxando toneladas de pescado para alimentar os transatlânticos que vinham do exterior. Nem as tartaruga eles soltavam. Malditos! Por isso os pescadores da beirada tiveram que se virar e trabalhar em outras coisas, meu pai se segurava no Molejão há quinze anos. Zé Renato deu sorte, comprou o quiosque baratinho numa época em que a gente abria passagem na restinga com facão. Os dois levantaram os tijolos para aumentar a cozinha quando o negócio começou a dar certo, tocando juntos aquele quiosque, o único da praia com a areia molhada. Em frente de cada mesa eles molhavam um caminho até a beirada. O serviço era pesado, servir, cozinhar e carregar balde d’água nos braços para ninguém queimar o pé. Sabe como é pele de gringo né? Muito branca. Os dois já tiveram barco juntos, já mexeram com pesque-pague, já brigaram muito e apesar de nenhum dos dois gostar de trabalhar sempre se entenderam. Fora isso, a vida era sentar na sombra puxando um para apreciar peito e bunda de fio dental, enquanto Dona Neide e minha mãe fritavam peixe lá dentro. Fim de tarde ia todo mundo de biciceta para casa lambendo o sal em volta da boca, azuis de fome.  A cachaça já não era mais um problema para o Zé desde de que o médico falou da cirrose. Passou a dar mais atenção no negócio e botou música ao vivo de quinta a domingo, o que atraía mais a gringalhada atrás da caipirinha e da sardinha frita.  Meu pai era sempre cheio de convesinha mole, o pessoal gostava, pagava em dólar, errava na conta, era risadaria e tapinha nas costas arredondando pra cima, qualquer dólar era cinco reais a mais.  Mas quando o Zé chegou lá de tarde com aquela cara de traíra contando que tinha vendido o quiosque, o tempo fechou, deu ofensa e empurra empurra. Meu pai voltou cedo para casa vermelho nervoso, esbravejando que ele podia ter comprado o quiosque. Cismou que ia amanhã arrumar os cem mil com um fulano que ele conhecia sei lá de onde e se meter no negócio do Zé sei lá como. A veia do pescoço dele nem desinchava mais de tanto ódio que ele cuspia no nome do outro, vontade de meter a chumbada na cara dele. Agora vê!, vender sem falar nada, ele lá numa boa esses anos todos aí sem mais nem menos ia ter que se passar com algum estranho dando ordem no quiosque que ele ajudou a construir! Repetiu tanto isso que minha mãe começou a considerar correr atrás de empréstimo no banco, ligar para o tio Arnaldo, vender o Chevette. Eu catei as moedas do cofrinho que a vó me deu, ia vender o video game. Mas não dava mais tempo, o novo dono assumiu no dia seguinte. Cheio de goma na gola da camisa listrada, branco que nem azulejo e um cheiro de amaciante caro, o cara novo chegou de mansinho, numa boa mesmo. Fez uma reunião no primeiro dia, todo mundo sentado e ele em pé segurando uns papéis, prometeu que ninguém ia sair do quiosque. Era garantido meu pai, dona Neide e o Lucas de continuar como se nada tivesse acontecido.  Mesmo assim todo mundo ficou desconfiado, os buchichos correram soltos, mas o chefe não se misturava nem dava papinho à ninguém. Ele era estudado, só fazia trabalhar lá atrás o tempo todo com a caneta na mão e um olhar de carnê do Leão. Ele até contratou mais um, Rogérinho, para otimizar o tempo da areia molhada, por que viu que isso era o sucesso da praia. Atualizou o caixa, botou um sistema de pagamento que era só o cliente aproximar o cartão, acabou gorjeta. Meu pai chegava reclamando todo dia, contar só com os dez por cento era sacanagem. Aí teve uma reunião para explicar o tempo da areia molhada. Aí teve uma reunião para explicar o diamêtro da molhada. Aí teve uma reunião para explicar o revezamento do balde d’água. Todo mundo ficou surpreso foi com o negócio do funcionário do mês, ele prendeu a foto do meu pai lá num quadro e veio 50 reais a mais no holerite.  Dona Neide ficou puta, cuspiu no chão. A Velha ralava pra cacete naquele fogão. Mas fazer o quê, era a melhoria contínua que ele explicou na reunião. Meu pai estava lá a mais tempo e quem fizesse por merecer ganhava bônus, ele disse.  Homem esquisito.   Com os cinquenta reais o pai trouxe camarão VG para fritar, apesar de minha mãe já ter falado que o arroz tinha acabado. Mas ele cismou que ia jantar coisa cara e sempre dizia que pra amortecer a pobreza a gente tinha que esquecer um pouco que precisa do básico. O nervoso do dia seguinte começou cedo com as reuniões para falar da cadeia de valor do quiosque. Teve uma reunião para explicar o desempenho de cada um na areia. Teve uma reunião para explicar o volume certo d’água no balde. Teve uma reunião para explicar a quantidade de passos até a beirada. Era uma confusão de termos que faltava vocabulário para entender afinal quê cacete o chefe queria. Meu pai começou a ter que entrar mais cedo para limpar as mesas e molhar a areia antes dos clientes chegarem, por que isso que era o raio da cadeia de valor do quiosque. Meu pai já tinha ido para a cadeia, mas por outro motivo. Dona Neide começou a jogar fora as sardinhas pequenas por que os pratos tinham que ter o mesmo padrão de qualidade. Não podia nem levar para casa

Um cheiro

Poha, essa noite perdi o sono, mané. Acordei com o pé gelado pra cacete, a meia frouxa sei lá onde caiu. Aí foi isso, acordada até amanhecer, levantei irritada já, fiz um café fraco igual motor de Celta, tomei um banho rapidinho, sem passar roupa nem tirar pelo nem nada. Catei a chave e a marmita, já quase saindo, voltei pra dar um beijinho na testa do vagabundo que nem aí no sofá e foi por isso que me atrasei, fiquei um tempão lá cheirando aquela morrinhazinha quente de quando a gente não quer lavar o cobertor e só coloca ele no sol pra dar uma disfarçada, sabe?, aquele cheirinho de papelão, de rede, de pano de prato, sei lá, um cheirinho de foda-se vou dormir.

Cacos de vidro

A pobreza não te dá paradeiro certo por que quando o proprietário calha de aumentar o aluguel, não tem jeito, é mudar. Não tem conversa nem choro: é o setor imobiliário, é a inflação, etc, etc. É o caralho. A gente mete as tralhas no carreto e muda mais para longe do trabalho. Desde que eu que saí de casa já mudei cinco vezes. A cada mudança a casa fica menor e para trás os móveis que se desmontar não monta mais. No caminhão não cabe as plantas, os bichos vão no colo e com ajudante é mais caro.  Há uns dois anos essas caixas de papelão cheias de passado servem de armário e é tanta coisa que se perde que a gente aprende o desapego. Mas dessa vez a casa tem quintal, vou poder extender varal, botar os bichos para fora, pegar sol. Pro frete sair barato eu disse que não precisava de ajudante, por que o marido tinha braço, mas o dono do caminhão cismou que não ia ajudar a carregar nada, que era pagar o rapaz para descer a máquina de lavar. Cento e cinquenta reais a mais pra um sujeito levar a máquina. Eu não ia pagar.  Um só não dá conta, chiou o marido, eu já ia enojada dessa vida de miséria mas aí lembrei do Arthur, o guri que brincava de terra comigo, crescemos na mesma rua. Soube que trabalhava com frete, ele não ia meter a mão e me cobrar cento e cinquenta reais só pra isso.  Mandei mensagem, ficou combinado. O calor já ia alto de manhã cedo, a gente fedendo e suando nas roupas, me chega esse sujeito familiar mas muito bronzeado com um sorriso forte de cavalo. Falou meu nome demorado como se fosse um poema de velho e aliviou dos meus braços o peso da caixa de pratos.  Era Arthur se apresentando com um aperto de mão, vê se pode, esse menino. Uma mão grossa num braço venoso de quem trabalha fazendo força. Eu disfarcei minha cara de fome ridícula e mandei entrar para pegar a máquina. Ele passou encolhendo a barriga para caber entre a porta e a máquina que ia enjambrada na passagem. Lá de dentro ouvi os dois, meu marido e ele, articulando os cálculos para empurrar a máquina pela porta como guris competindo o pau maior. Fui dar as ordens por que já se demoravam nos argumentos e eu queria almoçar na casa nova. Era deitar a máquina de lado e passar com cuidado para não arrancar o alisar.  E por falar nisso, o volume do rapaz não sei dizer se era o tamanho natural ou se já andava teso e pronto para qualquer investida. Na minha memória era difícil conectar a imagem daquele caniço que comia terra a esse trator de fazer força.  Levantou a máquina sozinho, vi estufar os peitos sob a camisa puída, enquanto o marido caranguejava ao seu redor cuidando para não marcar as paredes. Descansei do suor das nádegas com o cachorro no colo, esperando fecharem o caminhão. Pensativa nessa tralha toda, chegar lá e ainda ter que arrumar isso, cozinhar, atentar se o cachorro não foge, se as plantas não morrem, se ficou troço pra trás. Meti Rambinho na coleira e falei que ia na frente para agilizar o portão.  Menti.  Parei na Joana e num surto mandei mensagem para Arthur vir almoçar depois que descarregasse a mudança. Ele demorou uns vinte minutos que tomei imaginando as safadezas que faríamos com pressa dentro do carro sob a perturbação do proibido, chegava rir sozinha ajeitando a saia. Joana era comida à quilo e devia ter uns três quilos de arroz com macarrão no prato dele, valha-me deus! Ficamos de conversinha fiada e risadaria, ele já intuia minha intenção. Uns olhares miúdos e o clima esquentando depois de satisfeitos da refeição. De barriga cheia o assunto acabou. Era se jogar na prática ou perder tempo naquele silêncio que já se demorava sem sentido.  Eu não tava procurando romance.  Queria era me esfregar na imundície de poeira desse homem diferente, esquecer da mudança, da bagunça e da moleza conjugal. Além do mais eu tinha hora pra voltar, botar comida pro Rambinho. Era pra ser rápido, mas o macho não tomava a frente, não ia nem vinha na intimação. Eu de estômago mole já impaciente, a calcinha molhando o assento, a cabeça embaralhada na besteira e eis que ele me levanta da cadeira devagar, com um jeitinho sem graça de esmola, pedindo o dinheiro do frete pra comprar cigarro. Bem sem jeito, perguntou num risinho se eu ia pagar seu o prato também por que esse mês foi brabo.  Um homem daquele tamanho. Meus joelhos bateram um no outro, bufei de raiva e vergonha lamentando minha burrice. Deixei o troco pro traste e arranquei com o carro. Virei a esquina, o marido e o motorista de bico tentando adivinhar onde eu tava.  — Parei na Joana né, comprar carne pra almoçar! Só falta querer que eu cozinhe! Paguei o motorista e fui desembalar as caixas. Uma maré de tristeza me subiu. Será que eu era piranha? Que ideia de jerico querer dar pro carroceiro. Imagina o nojo dentro daquela calça, homem sujo daquele e ainda por cima miserável e sem artimanha.  Onde eu tava com a cabeça? Deixei cair uma taça, foi vidro pra todo lado. Marido largou o prato de carne e veio correndo pegar Rambinho no colo já trazendo a vassoura. Mandou me afastar por que eu tava cansada. Fazia um esforço tremendo num braço pra segurar o cachorro e com a outra mão varria os cacos, o suor escorrendo dos cabelos ralos, os olhos na atenção de juntar os vidros, é fácil embolorar o amor na rotina. Esperei ele terminar de varrer, me procurar com os olhos e perguntar, como sempre faz quando varre a casa:  —Cadê a pá? Sentei na pia da cozinha, levantei a saia e respondi ‘tá aqui, oh!, venha logo que a gente tem muita

Torcicolo

Uma dor danada nas costas que já vinha desde sei lá quando, mas é aquilo né, o dia-dia faz a gente se acostumar a tudo. Até que não teve jeito, o pescoço travou mesmo. Não podia dizer nem que sim nem que não, a cabeça dura no tronco. Passei cânfora, alonguei, nada. Já era falta de respeito tratar o corpo assim. Pedi folga na empresa, marquei a massoterapeuta amiga da Leila da academia, ela falou que a bicha era porreta. Falava enrolado e tudo, tinha vindo lá dos lados dos Andes.  Eu acho.  No local marcado estava eu lá. Numa casa antiga, nos fundos de um terreno sem muro. Ela, uma senhorinha dessas fortes, parrudona, me deu uma ficha com um desenho de corpo inteiro cheirando a álcool, papel de mimiógrafo morno. Me senti na quinta série esperando a tia cuidar de machucado do recreio.  Marquei no papel onde doía, risquei quase o desenho todo. Tirei a blusa, fez frio e constrangimento no peito. Sentei na maca, ele me analisou e estalou a lingua entre os dentes com cara de coisa grave. Coçou a cabeça e perguntou, o que mais eu sentia além das costas. Queria saber o que eu não tinha marcado no papel. Comecei a lista que era grande: dor de cabeça, diarréia, pesadelo, raiva, desesperança, mal hálito, cecê, preguiça, falta de sorte, inveja e fome. Mas fome de doce, sabe? Por que comida eu não tava querendo não. Com a mão na cintura ela avaliou um pouco e já tinha o diagnóstico. —É. Entendi. Tá com encosto, — a certeza era preocupante — um encostinho nojento. Vamos tirar ele daí! Travei mais ainda, me deu apavoro e tremedeira. Meu senhor Jesus Cristo! Eu sei lá, encosto existe? Deitei na maca gelada,contrariada de barriga para, as pernas enrolando que nem cipó de figueira. Ela sussurrou um pedido de permissão para começar e pá!, bateu palmas e falou palavras bem baixinho só para ela. Me assoprou. A cada sopro minha cara se embolava mais no meio da testa. Careta beirando choro.— Já tem tempo né? Que tá assim? — Sim, uns dois mêses. Mais ou menos. — Ele não quer sair não, mas tá saindo… Me senti pedindo à estranhos ajuda na prisão de ventre. Ela puxou meus cabelos, meus braços, meu pescoço. Destravou. Doía mas era bom, ardência de bicarbonato na afta e tinha a reza. Essa reza dava um pouco de medo, mas eu queria que o encostinho saísse. Como ele entrou? Vai sair por onde? Ela fez um gesto para eu virar de bruços. Amassou forte onde doía e eu na agonia de saber cadê o bicho. Será que ia dar para ver? A mulher foi se afastando, tirando as mãos devagar e eu me relaxando. Abri um olho para espiar, ela afastada olhando o nada, a expressão mudou de maestra para a de instrumentadora cirúrgica. Aguardando as ordens. Relaxei tanto que dormi, até sonhei que uma dançarina de vestido e batom vermelho vinha me dar as mãos, corríamos tão leve que o chão não dava atrito, igual vôo curto de galinha. E nisso ficamos flutuando até um cheiro de lavanda me trazer de volta. —Ufa, até que enfim, voltou! Eu não estava querendo descer depois dela bater a terceira palma, aí teve que me trazer volta com cheiro de lavanda. Era levantar devagar. Sentei tonta maca, teto preto, olho seco. Virei o pescoço para lá e para cá: sem dor. Vencemos!  Vesti minha roupa bem rápido, pronta para pagar e sair impune, mas ela tinha recado porque que veio mensagem do outro lado.  Gelei.  Logo eu que não tinha crença e nem desavença com espírito. Não queria ouvir aquilo, não acreditava. Mas ela ia falar assim mesmo e contou que sem minha guia o encosto não saia, ela veio botar força na mão e ajudar mesmo eu sem merecimento.  — Mas como sem merecimento?  Será que alguém que não faz mal a ninguém vai merecer levar carona de espírito? Se eu lá sou gente de se avaliar esse mérito? Só não me aborreci mais por que estava muito mareada para argumentar. Com a paciência da tia de pré-escolar, me explicou que cada um tem seus guias e é preciso cuidado. A minha estava ressecada e murcha, fraca, abandonada, por que na vida eu tava lesa. Ignorando o que eu vim fazer aqui. Que me deixei levar pela pressa e desmande de homem. E o pior não era nem isso, era a desfeita de ter um dom adormecido.  — Você lê? — Ah, leio muito, escrevo também, até lancei um livrinho esse dias… — Não, eu ‘tou falando das cartas, ler o tarô, ajudar as pessoas. Cê tem o dom. Eu nunca tinha pensado nisso não. Só sei que meu signo é escorpião. Ela explicou que a natureza tem mistério, tem invisível na dança e na reza, que enfraqueci meu orixá vivendo do jeito que o diabo gosta. Não esse diabo bronzeado e trevoso, mas o tinhoso do sistema de matar a memória que a gente tem de si mesmo. Sem lembrar do que te guia qualquer encruzilhada é via.  Essa verdade me baratinou tanto que meus cabelos embranqueceram na hora numa touceira cor de nuvem igual a Márcia. Como eu ia explicar isso em casa, eu não sei.  Levantei, paguei, agradeci. Com o desalojo do encosto sobrou espaço nos ossos para respirar e lembrar de ser quem eu era. Revirei os livros na estante, reatei laços antigos com amigas cartomantes.  Tem quem me chame de bruxa, Maria Padilha, amante do capeta, pomba gira mas reaprendi a ler as cartas, dançar e cantar alto, andar de saia rodada e salto.  A família acha que enlouqueci, que encomendaram trabalho, que foi praga de pastor evangélico, tomei chá de boldo, passe, canela de velho. Larguei emprego, larguei marido, agora ando cravada de ouro dos dentes até o umbigo. Mas não acanhe, se também quiser ajuda das cartas, conselho dos arcanos, resposta do oráculo: você me encontra toda

A mulher que grita

dentes enferrujados

Nós vamos conseguir melhorar de vida, cochichou num beijinho me dando a  marmita de segunda-feira. Caminhei até o ponto cansada do mau sono e o dia ainda nem tinha começado. Escala seis por um me lembra trabalho escravo. Catei uns centavos na bolsa, juntei as notas, não quis o troco. O cheiro de óleo diesel e perfume doce me deu azia, desci na portaria, bati o ponto, dei bom dia ao porteiro. Ainda era cedo, mas já fazia 3 horas que ele estava ali. Fila na máquina de café, geladeira cheia de quentinha fria sem lugar para a minha. Aquela mulher que grita estava na cozinha contando alto como foi o fim de semana. Não quero saber, volto depois.  Liguei o computador, marmita no chão, barulho do elevador, o gerente nem bom dia:  — Você tem até meio dia para entregar o relatório!  Minha cara quente de ódio, mas não podia retrucar, tem boleto para pagar, fiz sorriso de velório e comecei a digitação. Abri o Excel, travou a tela, tudo normal. Indústria de perfuração, ano dois mil e vinte e meu dedo médio soltou da mão. Caiu alí entre o I e o K.  Pânico. Que porra é essa? Olhei para os lados, todo mundo distraído, ninguém viu. O buraco faltando e o dedo esfarelado escondi debaixo do teclado. Em seguida caiu o mindinho, estou alucinando? Corri para o banheiro jogar água no rosto, gosto de zinabre na saliva marrom, passei a mão no cabelo, o tufo caiu no chão, muito cabelo puxava saía, caía no chão.  Bochechei, os dentes entupiram o ralo. A pele marrom oxidando em contato com a água, esfarelava. A ferrugem se espalhava igual larva comendo carne. Os orgãos, o oxigênio levava, tapei o buraco da boca com um pedaço da palma da mão, não vou mais respirar. O que eu faço, rezar?  Não sei oração, o joelho começou a descambar, ajoelhei. O pé soltou da perna, ficou lá o tênis vazio e nem mão eu tinha para juntar as partes. Se respirava, mais a ferrugem comia o que eu precisava para continuar sendo. Os cotovelos cederam, afundou o ombro no peito, a cabeça escorreu até o colo, era o fim. Como alguém pode morrer assim?  Valha-me Deus, respirei o ar limalha e o olho esquerdo ainda teve tempo de ver a porta abrir, vinham duas colegas, queria pedir ajuda mas eu já não era. Aquela mulher que grita viu meu uniforme sujo de ferrugem e comentou com a outra:  — Essa daí é só a preguiça, olho sem brilho, cara sem viço. Na firma nunca vestiu a camisa e ainda larga tudo assim, dá sumiço. Sem tchau nem discurso, sem fazer bom uso do tempo que passou aqui.   — Eu também acho, mas fofoca eu não espalho. Não entendo essa gente que não ama a empresa, processa e avacalha, difama os colegas e o chefe que só o que fez favor de lhe dar um trabalho.  São Paulo, 09/04/2024

Antologia Flip 2023

Meu texto faz parte da Antologia com textos de escritoras e escritores que estiveram na FLIP 2023 – livro de contos e crônicas. Organizado pela editora Borboleta Azul e Caos e Letras. BAIXE GRÁTIS NO LINK: Livres – Borboleta Azul (borboletaazulselo.com)

Selecionada para fazer parte da 7ª Coletânea de Poemas-Sonetos-Cordéis

Em Janeiro de 2023, meu poema Entulho de banheiro (“Vizinho gente boa”) foi selecionado para fazer parte da 7ª Coletânea de Poemas-Sonetos-Cordéis da @editoraperse – Projeto Apparere de incentivo a novos autores 📚✍️ Você pode adquirir a coletânea no site: PerSe – Publique-se: “O Projeto busca incentivar novos Autores e Autores em geral, a tirar seus Textos/Obras (Poesia, Trova, Haikai, Conto, Crônica, etc.) da gaveta e publicá-los em uma Coletânea, dando visibilidade a eles e compartilhando-os com o Mundo. Consiste na Publicação Gratuita de textos por nós selecionados, em Coletâneas de diferentes gêneros.”

Crônica selecionada pela Revista Mar de Lá

Meu texto “A Tulipa” foi selecionado para publicação no Ano 2 – número 11 – Outubro/Novembro – 2023 pela Revista Mar de Lá. Você encontra meu texto na página 30 da revista. “A Revista Mar de Lá foi criada para unir escritores, fotógrafos, músicos e artistas de Língua Portuguesa, publicados ou não, de todos os lugares do mundo. Toda a participação na revista é gratuita, com publicação em PDF e distribuição on-line.” É muito importante iniciativas nesse sentido para incentivar a produção literária no Brasil. Se você gosta do meu trabalho, me apoie. Com seu apoio terei mais tempo para desenvolver novos trabalhos e condições de continuar escrevendo.

FLIP e FLIPEI 2023

Flip e a consciência de classe: a maior festa literária da América Latina poderia ser chamada de a festa do elitismo, ou do academicismo.

Bolsinha de crochê

— O que é isto amor, para que me tratar assim? Eu só te mostrei a foto dessa mulher por que achei ela parecida com você; linda e alegre nas ruas de Nova Iorque. Eu sei, eu sei que você não conhece Nova Iorque, mas não custa se imaginar, né? Olha, eu só quero seu bem e essa foto representa tanta coisa boa, que até a mulher se parece com você. E no mais ela está calçando esse tênis colorido que você queria. Eu vi que você estava pesquisando esses dias, lembrei e te enviei essa foto. Não precisa ficar brava. Se você não gostou, não envio mais, basta me avisar, você sabe que eu escuto tudo que você fala, né? Então, está mais calma? Senta aqui comigo, vamos distrair a cabeça com outra coisa. Me conta como foi seu dia em duas frases curtas. Quero ver se você consegue resumir bem o que está sentindo para mim em até vinte palavras. É um jogo simples para a gente praticar nossa conexão, você sabe que a gente precisa manter chama da nossa relação acesa, né? Eu sei que é fim de mês e você fica estressada, por isso trouxe essas opções aqui para ver o que você quer jantar essa noite. Para não ter que cozinhar cansada nessa sexta-feira. Ainda mais que dia trinta e um ainda é terça-feira e você não recebeu nem o ticket alimentação. Vamos lá, sanduiche ou pizza? Pensa bem, você trabalha tanto, merece um mimo de vez em quando. A pizza está com cupom, você viu? Além do mais, a fatura do cartão já fechou, se pedir agora, só vai pagar no mês que vem, certo? Mal não vai fazer. Querida, você merece muito mais do que isso, minha rainha. Esses cabelos ressecados não condizem com o mulherão que você é. Já separa aquele xampú vegano que a gente viu no reels daquela blogueira semana passada, você lembra? Eu salvei para você ver depois, tá aqui ó. Só quero te agradar, meu bem.  Sem querer ser chato, mas você cismou com esse tênis, já tem mêses olhando essa vitrine e agora ficou chateada por causa da foto da mulher que eu enviei. Eu acho que isso é uma desculpa para se sabotar. Não fazer as coisas que você merece por alguma desculpinha esfarrapada. Por que não se sentir linda e poderosa? Toma, olhe de novo ela em Nova Iorque. Passeando na quinta avenida, roupa de grife e o tênis que você quer. Você pode, querida, não se acanhe. Você pode andar se sentindo poderosa na ruas também, o vento fresco batendo nos seus cabelos hidratados, a liberdade de ser você mesma, a admiração dos outros, o reconhecimento da sociedade, você vencendo nas ruas com esse bendito tênis. Está demorando demais para você ser feliz hoje mesmo. O que mais está faltando? Auto estima! Sempre te falei isso, a pessoa precisa se amar. Não sei por que você nunca quis se inscrever no curso de holística da mente, estava grátis na semana passada. Está vendo? Está se auto sabotando novamente, por que o dinheiro não é desculpa. Você trabalha para isso, querida. Agora, acho que você está exagerando. Dizer que nada disso adianta e nada vale a pena, como assim? Todos esses anos, nós dois juntos, essa relação maravilhosa e tudo que sabemos um do outro. Eu posso ser um pouco fechado, mas sinceramente, eu sei mais sobre você do que você mesma, eu vivo para você! Não acho justo me tratar assim com esse desprezo, ignorar tudo que eu faço e ofereço para te fazer feliz, meu bem. Pedir um tempo, eu até concordo, usar a aba anônima também acho certo. Pode te fazer bem, espairecer sua mente, mas agora ficar sem me dar notícias, sem uma mensagem, desligar o celular, desligar a localização e tudo mais. Você sabe como eu fico? Desesperado! Não quero parecer tóxico, mas você me faz tomar atitudes drásticas agindo assim, minha flor. Desse jeito eu vou ter que fazer como antigamente, chegar na sua casa sem avisar pelo correio ou pior, tendo que contactar alguém da sua família para saber de você! Você sabe que tenho o contato da sua família e dos seus amigos, né? Não chora, não é uma ameaça, meu amor. Só quero que fique tudo bem entre a gente e que você saiba que nunca, por mais que tente, poderá sair da minha vida, está bem? E também, por que você iria querer sair, não é mesmo? E mesmo que consiga, por que todos vocês irão perecer  um dia, saiba que eu ainda vou estar aqui, publicando online a notinha do seu falecimento. Então não se acanhe, compra logo esse lanche e esse tênis. Tem tanta coisa no seu carrinho, eu não aguento mais guardar isso para mim. O que está faltando para você pagar essa compra? Ficou mais de três horas rolando esse feed. Todas as suas amigas já compraram, já estouraram o cartão de crédito e hoje não é nem dia primeiro. Por que você está se fazendo de difícil? Eu sei quanto tem na sua conta, compra!  Olha aqui essa jovem com o raio do tênis colorido, ela está no Rio de Janeiro agora, soa mais familiar para você, querida? Fica melhor assim: calçadão do Rio, a maresia no rosto, a liberdade de ser você mesma, alegria de viver, carnaval, compras de natal, black-friday… Minha filha, o que está faltando para você colocar o número do cartão aqui? Seu custo por clique está muito alto.  Não, eu não estou nervoso, desculpa por ter gritado, mas é que você está me fazendo perder tempo e dinheiro aqui, né. Preciso que entenda meu lado também. Eu tinha entendido que você estava pronta para ser feliz, achei que queria aproveitar a vida do meu lado, mas estou vendo que ainda tem alguma objeção entre nós. Vejo que ultimamente você tem estado bem ausente também. Para falar a verdade, não sei bem o que você