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Sandra Abreu

Pé na areia quente

Meu pai não precisava olhar a tábua da maré para saber se ela estava subindo ou vazando. Pelo cheiro ele sabia se o sudoeste vinha com chuva, se o mar ia limpar e que só no verão encostava anchova.

Dar uma linhada ficou cada vez mais difícil por conta do mar cercado com redes das peixarias, não passava nem agulha. No longe se via as traineiras rodeadas de gaivotas, puxando toneladas de pescado para alimentar os transatlânticos que vinham do exterior. Nem as tartaruga eles soltavam.

Malditos!

Por isso os pescadores da beirada tiveram que se virar e trabalhar em outras coisas, meu pai se segurava no Molejão há quinze anos. Zé Renato deu sorte, comprou o quiosque baratinho numa época em que a gente abria passagem na restinga com facão.

Os dois levantaram os tijolos para aumentar a cozinha quando o negócio começou a dar certo, tocando juntos aquele quiosque, o único da praia com a areia molhada. Em frente de cada mesa eles molhavam um caminho até a beirada. O serviço era pesado, servir, cozinhar e carregar balde d’água nos braços para ninguém queimar o pé. Sabe como é pele de gringo né?

Muito branca.

Os dois já tiveram barco juntos, já mexeram com pesque-pague, já brigaram muito e apesar de nenhum dos dois gostar de trabalhar sempre se entenderam. Fora isso, a vida era sentar na sombra puxando um para apreciar peito e bunda de fio dental, enquanto Dona Neide e minha mãe fritavam peixe lá dentro. Fim de tarde ia todo mundo de biciceta para casa lambendo o sal em volta da boca, azuis de fome. 

A cachaça já não era mais um problema para o Zé desde de que o médico falou da cirrose. Passou a dar mais atenção no negócio e botou música ao vivo de quinta a domingo, o que atraía mais a gringalhada atrás da caipirinha e da sardinha frita. 

Meu pai era sempre cheio de convesinha mole, o pessoal gostava, pagava em dólar, errava na conta, era risadaria e tapinha nas costas arredondando pra cima, qualquer dólar era cinco reais a mais. 

Mas quando o Zé chegou lá de tarde com aquela cara de traíra contando que tinha vendido o quiosque, o tempo fechou, deu ofensa e empurra empurra. Meu pai voltou cedo para casa vermelho nervoso, esbravejando que ele podia ter comprado o quiosque. Cismou que ia amanhã arrumar os cem mil com um fulano que ele conhecia sei lá de onde e se meter no negócio do Zé sei lá como. A veia do pescoço dele nem desinchava mais de tanto ódio que ele cuspia no nome do outro, vontade de meter a chumbada na cara dele.

Agora vê!, vender sem falar nada, ele lá numa boa esses anos todos aí sem mais nem menos ia ter que se passar com algum estranho dando ordem no quiosque que ele ajudou a construir! Repetiu tanto isso que minha mãe começou a considerar correr atrás de empréstimo no banco, ligar para o tio Arnaldo, vender o Chevette. Eu catei as moedas do cofrinho que a vó me deu, ia vender o video game. Mas não dava mais tempo, o novo dono assumiu no dia seguinte.

Cheio de goma na gola da camisa listrada, branco que nem azulejo e um cheiro de amaciante caro, o cara novo chegou de mansinho, numa boa mesmo. Fez uma reunião no primeiro dia, todo mundo sentado e ele em pé segurando uns papéis, prometeu que ninguém ia sair do quiosque. Era garantido meu pai, dona Neide e o Lucas de continuar como se nada tivesse acontecido. 

Mesmo assim todo mundo ficou desconfiado, os buchichos correram soltos, mas o chefe não se misturava nem dava papinho à ninguém. Ele era estudado, só fazia trabalhar lá atrás o tempo todo com a caneta na mão e um olhar de carnê do Leão.

Ele até contratou mais um, Rogérinho, para otimizar o tempo da areia molhada, por que viu que isso era o sucesso da praia. Atualizou o caixa, botou um sistema de pagamento que era só o cliente aproximar o cartão, acabou gorjeta. Meu pai chegava reclamando todo dia, contar só com os dez por cento era sacanagem.

Aí teve uma reunião para explicar o tempo da areia molhada.

Aí teve uma reunião para explicar o diamêtro da molhada.

Aí teve uma reunião para explicar o revezamento do balde d’água.

Todo mundo ficou surpreso foi com o negócio do funcionário do mês, ele prendeu a foto do meu pai lá num quadro e veio 50 reais a mais no holerite.  Dona Neide ficou puta, cuspiu no chão. A Velha ralava pra cacete naquele fogão. Mas fazer o quê, era a melhoria contínua que ele explicou na reunião. Meu pai estava lá a mais tempo e quem fizesse por merecer ganhava bônus, ele disse. 

Homem esquisito.  

Com os cinquenta reais o pai trouxe camarão VG para fritar, apesar de minha mãe já ter falado que o arroz tinha acabado. Mas ele cismou que ia jantar coisa cara e sempre dizia que pra amortecer a pobreza a gente tinha que esquecer um pouco que precisa do básico.

O nervoso do dia seguinte começou cedo com as reuniões para falar da cadeia de valor do quiosque.

Teve uma reunião para explicar o desempenho de cada um na areia.

Teve uma reunião para explicar o volume certo d’água no balde.

Teve uma reunião para explicar a quantidade de passos até a beirada.

Era uma confusão de termos que faltava vocabulário para entender afinal quê cacete o chefe queria. Meu pai começou a ter que entrar mais cedo para limpar as mesas e molhar a areia antes dos clientes chegarem, por que isso que era o raio da cadeia de valor do quiosque. Meu pai já tinha ido para a cadeia, mas por outro motivo.

Dona Neide começou a jogar fora as sardinhas pequenas por que os pratos tinham que ter o mesmo padrão de qualidade. Não podia nem levar para casa por causa da vigilância sanitária, era lixo. Depois meu pai e o menino novo tiveram que contar os passos até mar e em vez de andar era para correr e melhorar desempenho da areia molhada.

Rogérinho era maconheiro, nadava para depois da arrebentação e ficava lá na brisa dele boiando com o balde até a areia secar. De longe todo mundo ria dos gringos catando cavaco até a água. Um foi reclamar que a maré levou seu chinelo e teve uma mulher que ficou uma hora esperando dentro d’água e o menino boiando lá no horizonte.

Nesse dia não teve dez por cento.

Foi a primeira vez que o chefe largou os papéis e veio perguntar a meu pai o que tinha acontecido, disse que não ia punir ninguém, falava bem educado ele, mas queria saber quem não estava contribuindo para o raio da melhoria contínua. Meu velho não era de dedurar, colou o cigarro no lábio:

Pessoal é foda, né patrão?

Às vezes o jantar atrasava por que vira e mexe era precisada a ajuda do meu pai para fechar o caixa. O chefe não entendia ainda a letra da dona Neide nos papeizinhos de pedidos, não sabia o que tinha entrado no caixa, o que tinha saído, o que tinha no estoque e o que já tinha vendido.

Aí o olho brilhou!

Meu pai entesou o cú na cadeira com atenção máxima e bateram as vendas daquele dia com a lista de pedidos, deduziram os dez por cento dos funcionários, calcularam o estoque e dessa matemática resultou quinhentos reais metido no bolso da bermuda de meu pai e sua veia do pescoço saltada de novo, só que dessa vez era nervoso de dinheiro. Foi briga feia e minha mãe disse que não ia fritar nada.

Todo dia quinhentos, seiscentos reais no bolso e comida cara na janta. Minha mãe pedia para ele parar por que ia perder o emprego, ia ser pior. Mas é ruim hein!, ele ficar a vida toda vivendo de mixaria do quiosque que era para ser dele, repetia. Num descontrole total dos músculos da cara, afirmava nervoso que era justa a sua parte, que só estava pegando o que era dele. 

Virou rotina na hora de fechar, o chefe chamar para mostrar no computador uma planilha com o saldo do dia de onde se deduzia o INSS e as taxas de juros do governo, aí abria a calculadora fazia umas divisões por sei lá o quê, e o computador ficava lá pensando seriamente sob o olhar atento dos dois. O patrão passava horas nessa sistemática, uma mão na calvície, a outra na calculadora e uns números saindo dos lábios finos típico dos contabilistas. 

Por trás do cérebro de meu pai os cálculos eram outros e o buraco desse casco vazou até o final do ano. Os patacos de dinheiro que chegavam enrolados em elástico dariam um aumento bom no salário da turma, mas o diabo do chefe só sabia repetir que a folha de pagamento, que os direitos trabalhistas, que era muito imposto, para ter paciência que o aumento ia sair em breve.

Conversa fiada.

Dona Neide, além do quiosque, lavava roupa pra fora para pagar os remédios do filho. Rogerinho não ligava para nada, só gastava com maconha e nessa brisa ele não achava nada ruim. O Lucas dava tudo pro pastor, mas isso não justificava salário ser castigo e todos esses anos ninguém conseguir se sustentar direito.

Mas lá em casa as coisas mudaram rapidinho e não tinha mais briga, meu pai botou os dentes, trocou o carro, a casa ganhou telhado, minha mãe passou a cortar o cabelo no salão. Eu e meus irmãos entramos no inglês. Camarão VG virou rotina e a gente tinha até poupança. 

Na festa de confraternização o chefe colou na parede os gráficos que mostravam o Molejão indo muito bem, só seta para cima. O buraco no caixa não fazia nem cosquinha nos lucros. Indicadores melhores que no ano passado, ele explicou, e a tendência era melhorar ano que vem e aí sim quem sabe o aumento não saia, né minha gente? 

Estourou a cidra.

Todo mundo ganhou uma cesta de natal com tender, panetone, frutas cristalizadas e cidra. Se abraçaram com promessas de ano novo. Dona Neide chorou bem coitada quando viu a carne brilhando no papel celofane, o laço azul na cesta tão lindo: 

Esse é o melhor patrão, Zé Renato nunca me deu nada!, fez ela cuspindo no chão. Abençoou o chefe com o rostinho enrugado nas lágrimas, beijando e acariciando a mão do homem que, sem graça, retraía o braço. Meu pai foi empurrando a velha até um canto para findar essa humilhação. 

Melhor patrão de cú é rola! 

No fim da festa, todo mundo já indo embora feliz de álcool, com a barriga e o espírito tão satisfeitos que era quase possível simpatizar com o patrão. Levamos Dona Neide para casa de carro, muito emocionada ela chorava para dentro. Meu pai se sentindo afortunado demais, puxou da cesta o pacotinho de frutas cristalizadas e sob o olhar orgulhoso da família, com a cerimonia de quem tirasse da boca de um filho ofereceu à Dona Neide, no desejo caridoso de aliviar um pouco a miséria dos menos favorecidos.

{(Foto: Wilton Junior / Agência Estado) }

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Sandra Abreu

Formada em Sistemas de Informação e Telecomunicações. Escrevo desde a infância, mas somente em 2023 submeti meus trabalhos para o público.

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